Apolo Ribeiro, atual herdeiro da poderosa família Ribeiro, é conhecido por sua frieza impenetrável e disciplina quase militar. Durante anos, o acordo de casamento entre os Ribeiro e os Rocha parecia apenas uma formalidade esquecida — principalmente porque ninguém jamais ousaria juntar o severo Apolo com a doce e reservada Mavie Rocha. Para Mavie, ele sempre foi um estranho distante, alguém que passava mais tempo no exterior do que nas manchetes sociais. Tudo muda quando o destino — e as vontades das famílias — os obriga a oficializar esse elo esquecido. Mas o que deveria ser uma união de conveniência logo revela outra face. Aos olhos do mundo, Apolo apenas cumpre seu dever. Porém, atrás das portas fechadas de sua mansão, entre sussurros na escada em espiral e olhares roubados durante a noite, Mavie descobre um homem que, longe de ser gelado, queima com uma intensidade perigosa. E quando gritos por divórcio encontram beijos sufocados pela paixão, fica claro que algumas promessas familiares carregam chamas que recusam a se apagar.

Capítulo 1“Mavi, minha vida está nas suas mãos. Depois do feriado de Festa da Lua, se minha melhor amiga vai estar viva ou não, depende só de você.”Sob a noite tênue, Mavie Rocha caminhava sobre as folhas caídas no caminho arborizado, ouvindo a voz da amiga do outro lado da linha, ao mesmo tempo ressentida e suplicante. Ela conteve o riso e perguntou:— Só esqueceu um pendrive na ‘Noite Celestial’?— Isso, isso mesmo — do outro lado, a resposta veio rápida, quase como um aceno frenético de cabeça —. Um pendrive branco, está na sala 8A02, oitavo andar da ‘Noite Celestial’.Mavie Rocha lançou um olhar para o portão da Universidade da Cidade R, iluminada pelo néon ao longe.Normalmente movimentado, o portão sul do campus da Universidade da Cidade R estava, naquela noite, excepcionalmente silencioso.Os poucos que passavam, apressados e com malas, corriam em direção à saída, ansiosos pelo reencontro com a família durante a Festa da Lua.Ninguém ficava por ali.Desviando o olhar, Mavie Rocha ignorou os veteranos e calouros apressados. Para Serena Gomes, do outro lado da linha, ela disse:— Já vou para lá. Assim que eu pegar, te aviso.Desligou, observando o céu já escuro, e abriu o aplicativo de corridas para ir até a ‘Noite Celestial’ buscar o pendrive da amiga.O dedo mal tocara a tela quando uma voz masculina, conhecida, soou atrás dela.— Mavi.O gesto de Mavie Rocha parou no ar. Ela se virou.Bernardo Carneiro, de camisa branca e calça preta, segurava uma mochila enquanto atravessava a rua arborizada, vindo em sua direção.Quando se aproximou, Mavie Rocha cumprimentou com educação:— Olá, veterano.Ao encarar os olhos límpidos dela, Bernardo Carneiro ficou visivelmente sem graça; até mesmo a mão que segurava a mochila se apertou, involuntariamente. Perguntou:— Ouvi dizer que você vai ficar na Cidade R durante o feriado da Festa da Lua. O grupo do nosso departamento está pensando em fazer um jantar amanhã para aqueles que não vão para casa. Você pode ir?Perto do portão, as buzinas dos carros ecoavam na noite. Mavie Rocha sorriu de leve e recusou, sem hesitar muito:— Amanhã tenho uns compromissos, acho que não vou conseguir.Bernardo Carneiro pareceu um pouco desapontado, mas não deixou transparecer muito.— Tudo bem, quando você puder, marcamos outro encontro.Caminharam juntos até a calçada. Diante dos carros sob os postes de luz, Bernardo Carneiro diminuiu o passo, e, com esperança na voz, ofereceu:— Já está ficando tarde... Quer que eu te acompanhe até em casa?Mavie Rocha ia recusar, mas não teve tempo. Um Maybach preto, edição limitada, parou diante deles. O vidro se abaixou, revelando um homem de feições sérias e distantes, com o rosto parcialmente à sombra.Os olhos eram tão negros que pareciam insondáveis.Ele olhou para Mavie Rocha e Bernardo Carneiro, que estavam próximos.Sua voz, fria e cortante, soou:— Mavi.Mavie Rocha congelou, voltando-se instintivamente.As palavras de recusa a Bernardo Carneiro morreram na garganta ao ver Apolo Ribeiro, no banco do motorista do Maybach. Da sua boca escapou, surpresa:— ...Mano?Bernardo Carneiro também percebeu quem era.Apolo Ribeiro, ele nunca tinha visto pessoalmente.Mas aquele rosto era bem conhecido — presença constante nos jornais e canais de economia. Quem acompanha o mundo dos negócios conhecia o primogênito da família Ribeiro, o Tubarão do Sul, figura central nos círculos empresariais nacionais e internacionais.Mavie Rocha era sempre discreta na universidade. Bernardo Carneiro jamais imaginou que ela tivesse alguma ligação com a poderosa família Ribeiro da Cidade R.Apolo Ribeiro não olhou para Bernardo Carneiro. Com os dedos frios, bateu no volante, mantendo o olhar firme, ainda surpreso, em Mavie Rocha.— Entre no carro. Vamos para casa.Mavie Rocha apertou o celular nas mãos.Despediu-se rapidamente de Bernardo Carneiro e caminhou até o Maybach. Ao invés de abrir a porta, olhou pelo vidro e disse a Apolo Ribeiro:— Preciso passar na ‘Noite Celestial’ primeiro, não quero incomodar...— Não é incômodo.A resposta veio antes que ela terminasse a frase.A voz dele era calma, porém inquestionável.— Entre, eu te levo.Mavie Rocha hesitou.Diante daquele olhar escuro, não teve coragem de insistir. Olhou para o banco do carona, conteve o impulso de recuar e, por fim, entrou.O carro preto rapidamente se misturou ao trânsito iluminado, e o imponente portão sul da Universidade da Cidade R foi ficando pequeno no retrovisor.Mavie Rocha morava com a família Ribeiro desde muito nova, mas mal via Apolo Ribeiro.Primeiro, porque ele passava a maior parte do tempo no exterior.Segundo, porque tinha um temperamento reservado, sempre envolto em uma aura de distância que afastava qualquer tentativa de aproximação. Mavie Rocha, desde pequena, sempre o respeitara, mas mantinha distância.Mesmo quando ele voltava ao Brasil, ela fazia questão de evitar encontros.A súbita volta de Apolo Ribeiro e sua presença na Universidade da Cidade R eram totalmente inesperadas.Mavie Rocha nunca soube lidar bem com ele, e Apolo Ribeiro tampouco era fácil de se conviver. Desde que entrou no carro, ela se encolheu no banco do carona, em silêncio, tentando passar despercebida.Até as mãos estavam repousadas, certinhas, sobre as pernas.Apolo Ribeiro lançou um olhar de soslaio. Segurando o volante com uma mão, bateu de leve com os dedos no couro, e, após um breve silêncio, perguntou:— Quem era aquele rapaz?Mavie Rocha, distraída, respondeu instintivamente:— Um veterano da universidade.Ele não pareceu satisfeito.— Que tipo de veterano?Mavie Rocha lançou um olhar na direção de Apolo Ribeiro, sem qualquer intenção de esconder nada, respondendo com a sinceridade de uma irmã diante da pergunta de um irmão:— É um veterano do grupo de pesquisa do departamento.— Vocês costumam se encontrar com frequência?Mavie Rocha balançou a cabeça.— Só nos vemos de vez em quando.Diante dessa resposta, Apolo Ribeiro não insistiu mais.O silêncio voltou a dominar o interior do carro.O veículo seguia o fluxo do trânsito, e, enquanto aguardavam o sinal abrir, Mavie Rocha decidiu romper a quietude, trazendo à tona a dúvida que a acompanhava desde o momento em que viu Apolo Ribeiro de repente naquele dia.— Quando você voltou para casa?Apolo Ribeiro recostou-se no banco, parte do rosto encoberta pela penumbra. Talvez por conta da noite, o distanciamento habitual que emanava parecia suavizado.— Hoje — respondeu ele. — O avião pousou às cinco da tarde.Enquanto falava, virou-se para olhar Mavie Rocha.Ela ainda não havia desviado o olhar.No instante em que Apolo Ribeiro se virou, os olhares dos dois se encontraram.O olhar dele era tão intenso que Mavie Rocha, instintivamente, quis desviar, mas antes disso, ouviu a pergunta dele:— Ouvi dizer que faz quase meio ano que você não volta para casa.O semáforo abriu, e os carros à frente começaram a se mover.Apolo Ribeiro voltou a olhar para frente e pisou no acelerador.Ele não perguntou o motivo de Mavie Rocha não voltar para a família Ribeiro havia tanto tempo, como se o comentário tivesse sido apenas uma observação casual, logo seguindo para explicar o motivo de estar ali.— Preciso resolver alguns assuntos na sede da empresa, que fica perto da Universidade Cidade R. Amanhã é feriado de meio de outono, então aproveitei para te buscar.Mavie Rocha agradeceu com educação.Cidade R era uma metrópole que nunca dormia; quanto mais tarde, mais intensa se tornava sua vida noturna.O ‘Noite Celestial’ era o maior centro de entretenimento de Cidade R, e à medida que a noite avançava, seu movimento atingia o auge.Sob as luzes de néon, o Maybach entrou no estacionamento do ‘Noite Celestial’. Mavie Rocha soltou o cinto de segurança, pronta para avisar Apolo Ribeiro que subiria apenas para pegar algo rapidamente.Antes que pudesse falar, viu Apolo Ribeiro também soltando o cinto para sair do carro.— Irmão, só vou pegar uma coisa para uma amiga, não precisa me acompanhar...Sem diminuir o passo, Apolo Ribeiro respondeu, levando-a consigo:— O ‘Noite Celestial’ à noite é muito movimentado. Prefiro ir junto, não me sinto tranquilo te deixando sozinha.Passaram pela porta giratória, e Apolo Ribeiro conduziu Mavie Rocha diretamente para o acesso VIP.Enquanto as portas do elevador se fechavam, ele olhou para a jovem, cujo visual destoava completamente do ambiente extravagante do ‘Noite Celestial’. Antes de apertar o botão do andar, perguntou:— Qual andar?Mavie Rocha olhou para o painel de botões.Desistindo de apertar ela mesma, respondeu obedientemente:— Oitavo.O elevador mal chegara ao terceiro andar quando um toque repentino de celular rompeu o silêncio do espaço fechado.Mavie Rocha permaneceu quieta, mas seus olhos límpidos não resistiram e lançaram um breve olhar para o celular de Apolo Ribeiro.No visor, piscava um nome salvo em inglês.Apolo Ribeiro olhou para a tela, não atendeu, mas tampouco recusou a ligação.O elevador VIP do ‘Noite Celestial’ era rápido; após poucos toques, as portas se abriram com um “ding”.Mavie Rocha saiu antes de Apolo Ribeiro, dizendo:— Pode ir cuidar dos seus assuntos, eu só vou pegar a encomenda no camarote.Apolo Ribeiro assentiu calmamente, deslizou o dedo na tela para atender a ligação, mas manteve os olhos fixos no corredor à frente, acompanhando Mavie Rocha enquanto ela procurava o camarote certo.Ele não ficou esperando na porta do elevador.Enquanto ouvia o relatório do outro lado da linha, seguiu sem pressa atrás de Mavie Rocha.No fim do corredor, encontraram o camarote 8A02. Mavie Rocha entrou, circulou algumas vezes pelo espaço até finalmente encontrar o pen drive de Serena Gomes, caído entre as almofadas do sofá.Com o objeto na mão, saiu rapidamente.Ao deixar o camarote, viu Apolo Ribeiro apoiado na parede do outro lado, esperando por ela.Ao vê-la sair, ele desligou o celular e levantou os olhos:— Achou o que precisava?Mavie Rocha assentiu.Ele se endireitou, conduzindo-a de volta:— Então vamos para casa.O corredor do ‘Noite Celestial’ tinha formato semicircular, e o 8A02 ficava na extremidade. O caminho de volta pelo lado oposto era mais curto.Mavie Rocha seguiu ao lado de Apolo Ribeiro em silêncio.Quando passaram pelo meio do corredor, ao lado de uma porta de camarote entreaberta, uma voz familiar se fez ouvir lá de dentro:— Mavi? Ela é certinha — o tom trazia uma leve ironia, com uma frieza difícil de decifrar, entre zombaria e indiferença —. Mas certinha demais, tão certinha que nem dá vontade de se aproximar.Criada junto com essa pessoa desde pequena, Mavie Rocha reconheceu imediatamente a voz.No entanto, seu rosto não demonstrou qualquer alteração. Exceto por um breve instante em que hesitou o passo, seguiu caminhando como se nada tivesse ouvido.Dentro do camarote, o ambiente era tomado pela fumaça e pelas mesas repletas de bebidas.Do sofá à frente, Bryan Farias ouviu o comentário e franziu a testa, advertindo:— Felipe, isso foi pesado. Mavi cresceu conosco, sempre foi a mais próxima de você, sempre gostou de estar ao seu lado. E, além disso, as famílias Ribeiro e Rocha têm um compromisso.Felipe Ribeiro soltou um riso sarcástico.As pálpebras semicerradas escondiam parte da zombaria em seu olhar, mas não conseguiam disfarçar o traço irônico em seus lábios.Próximos?Ela só era próxima porque ele nascera na família Ribeiro.Porque ele se chamava Ribeiro, o escolhido para o compromisso de casamento com ela.Se não tivesse tido esse privilégio de nascimento, aquela proximidade jamais seria dele.No estacionamento.Assim que entrou no carro e ligou o motor, Apolo Ribeiro lançou um olhar para a jovem sentada no banco do passageiro. Com o carro em movimento, perguntou:— Brigou com o Felipe?Mavie Rocha segurava o celular, os olhos baixos, e balançou a cabeça.— Não.Há mais de vinte anos, a família Rocha, assim como hoje a família Ribeiro, estava no topo da pirâmide social da Cidade R, entre as famílias mais influentes.Além disso, as famílias Ribeiro e Rocha sempre mantiveram uma relação próxima. Os mais velhos da família Ribeiro estavam constantemente presentes, e, assim que Mavie nasceu, as duas famílias já haviam selado um acordo de casamento.Mas aquela boa fase não durou muito.Quando Mavie tinha dez anos, um acidente inesperado tirou a vida de seus pais em uma só noite, e a empresa da família Rocha quase veio abaixo.A família Ribeiro interveio na hora certa, usando sua influência para proteger os negócios da família Rocha, e imediatamente acolheu Mavie, criando-a como se fosse da própria família.A família Ribeiro tinha dois filhos: Apolo Ribeiro, sete anos mais velho que ela, já estava estudando no exterior quando Mavie foi viver com eles.Quem convivia com ela no dia a dia, dividia o mesmo teto na antiga casa dos Ribeiro e crescia junto, ano após ano, era Felipe Ribeiro, dois anos mais velho.Antes de atingir a maioridade, talvez por viverem juntos, a relação entre ela e Felipe nunca foi ruim.Na verdade, era surpreendentemente boa.Na escola, Felipe a protegia.Na antiga casa dos Ribeiro, Felipe cuidava dela.E mesmo quando os pais de Felipe viajavam e não estavam em casa, em toda noite de tempestade, com raios e trovões, era Felipe quem permanecia ao lado dela.Mas essa convivência harmoniosa chegou ao fim de forma abrupta há dois anos.O acordo de casamento entre as famílias Ribeiro e Rocha nunca foi segredo.Comparada a Apolo Ribeiro, ela e Felipe tinham idades próximas e cresceram juntos. Praticamente todos assumiam, sem precisar dizer, que o compromisso entre as famílias recairia sobre ela e Felipe.A própria Mavie Rocha pensava assim.Até que, dois anos atrás, a relação entre ela e Felipe começou a esfriar sem razão aparente.No início, ela não entendia por que uma amizade construída ao longo de tantos anos mudara tão de repente.Só depois percebeu que Felipe resistia ao casamento arranjado.Ele rejeitava uma vida planejada por outros.Rejeitava viver como um robô, seguindo um roteiro imposto.Naturalmente, ela, a “noiva” escolhida desde a infância, passou a ser rejeitada também.Antes de saber do desprezo de Felipe pelo compromisso, Mavie jamais havia cogitado romper o noivado.Desde pequena, todos lhe diziam que ela e Felipe haviam sido prometidos um ao outro desde o nascimento; os pais de Felipe sempre a trataram como filha, com carinho e cuidado.O casamento entre as famílias, para Mavie, já era uma tradição inconsciente, aceita à medida que crescia.Por isso, ao descobrir a aversão de Felipe ao casamento, ela ficou atônita.Mas, passada a surpresa, a primeira coisa que fez foi aproveitar a desculpa da distância entre o campus da Universidade de Cidade R e a casa dos Ribeiro para se mudar.Assim, evitaria esbarrar com Felipe a todo momento e pouparia o constrangimento dos dois.Neste feriado de meio de primavera, Mavie Rocha nem pensava em voltar para a casa dos Ribeiro. Nas últimas semanas, tinha estado tão envolvida com o projeto da faculdade que mal teve tempo para respirar. Com o feriado, tudo o que queria era descansar no próprio apartamento, jogada no sofá para recuperar as energias.Capítulo 2“Mavi, minha vida está nas suas mãos. Depois do feriado de Festa da Lua, se minha melhor amiga vai estar viva ou não, depende só de você.”Sob a noite tênue, Mavie Rocha caminhava sobre as folhas caídas no caminho arborizado, ouvindo a voz da amiga do outro lado da linha, ao mesmo tempo ressentida e suplicante. Ela conteve o riso e perguntou:— Só esqueceu um pendrive na ‘Noite Celestial’?— Isso, isso mesmo — do outro lado, a resposta veio rápida, quase como um aceno frenético de cabeça —. Um pendrive branco, está na sala 8A02, oitavo andar da ‘Noite Celestial’.Mavie Rocha lançou um olhar para o portão da Universidade da Cidade R, iluminada pelo néon ao longe.Normalmente movimentado, o portão sul do campus da Universidade da Cidade R estava, naquela noite, excepcionalmente silencioso.Os poucos que passavam, apressados e com malas, corriam em direção à saída, ansiosos pelo reencontro com a família durante a Festa da Lua.Ninguém ficava por ali.Desviando o olhar, Mavie Rocha ignorou os veteranos e calouros apressados. Para Serena Gomes, do outro lado da linha, ela disse:— Já vou para lá. Assim que eu pegar, te aviso.Desligou, observando o céu já escuro, e abriu o aplicativo de corridas para ir até a ‘Noite Celestial’ buscar o pendrive da amiga.O dedo mal tocara a tela quando uma voz masculina, conhecida, soou atrás dela.— Mavi.O gesto de Mavie Rocha parou no ar. Ela se virou.Bernardo Carneiro, de camisa branca e calça preta, segurava uma mochila enquanto atravessava a rua arborizada, vindo em sua direção.Quando se aproximou, Mavie Rocha cumprimentou com educação:— Olá, veterano.Ao encarar os olhos límpidos dela, Bernardo Carneiro ficou visivelmente sem graça; até mesmo a mão que segurava a mochila se apertou, involuntariamente. Perguntou:— Ouvi dizer que você vai ficar na Cidade R durante o feriado da Festa da Lua. O grupo do nosso departamento está pensando em fazer um jantar amanhã para aqueles que não vão para casa. Você pode ir?Perto do portão, as buzinas dos carros ecoavam na noite. Mavie Rocha sorriu de leve e recusou, sem hesitar muito:— Amanhã tenho uns compromissos, acho que não vou conseguir.Bernardo Carneiro pareceu um pouco desapontado, mas não deixou transparecer muito.— Tudo bem, quando você puder, marcamos outro encontro.Caminharam juntos até a calçada. Diante dos carros sob os postes de luz, Bernardo Carneiro diminuiu o passo, e, com esperança na voz, ofereceu:— Já está ficando tarde... Quer que eu te acompanhe até em casa?Mavie Rocha ia recusar, mas não teve tempo. Um Maybach preto, edição limitada, parou diante deles. O vidro se abaixou, revelando um homem de feições sérias e distantes, com o rosto parcialmente à sombra.Os olhos eram tão negros que pareciam insondáveis.Ele olhou para Mavie Rocha e Bernardo Carneiro, que estavam próximos.Sua voz, fria e cortante, soou:— Mavi.Mavie Rocha congelou, voltando-se instintivamente.As palavras de recusa a Bernardo Carneiro morreram na garganta ao ver Apolo Ribeiro, no banco do motorista do Maybach. Da sua boca escapou, surpresa:— ...Mano?Bernardo Carneiro também percebeu quem era.Apolo Ribeiro, ele nunca tinha visto pessoalmente.Mas aquele rosto era bem conhecido — presença constante nos jornais e canais de economia. Quem acompanha o mundo dos negócios conhecia o primogênito da família Ribeiro, o Tubarão do Sul, figura central nos círculos empresariais nacionais e internacionais.Mavie Rocha era sempre discreta na universidade. Bernardo Carneiro jamais imaginou que ela tivesse alguma ligação com a poderosa família Ribeiro da Cidade R.Apolo Ribeiro não olhou para Bernardo Carneiro. Com os dedos frios, bateu no volante, mantendo o olhar firme, ainda surpreso, em Mavie Rocha.— Entre no carro. Vamos para casa.Mavie Rocha apertou o celular nas mãos.Despediu-se rapidamente de Bernardo Carneiro e caminhou até o Maybach. Ao invés de abrir a porta, olhou pelo vidro e disse a Apolo Ribeiro:— Preciso passar na ‘Noite Celestial’ primeiro, não quero incomodar...— Não é incômodo.A resposta veio antes que ela terminasse a frase.A voz dele era calma, porém inquestionável.— Entre, eu te levo.Mavie Rocha hesitou.Diante daquele olhar escuro, não teve coragem de insistir. Olhou para o banco do carona, conteve o impulso de recuar e, por fim, entrou.O carro preto rapidamente se misturou ao trânsito iluminado, e o imponente portão sul da Universidade da Cidade R foi ficando pequeno no retrovisor.Mavie Rocha morava com a família Ribeiro desde muito nova, mas mal via Apolo Ribeiro.Primeiro, porque ele passava a maior parte do tempo no exterior.Segundo, porque tinha um temperamento reservado, sempre envolto em uma aura de distância que afastava qualquer tentativa de aproximação. Mavie Rocha, desde pequena, sempre o respeitara, mas mantinha distância.Mesmo quando ele voltava ao Brasil, ela fazia questão de evitar encontros.A súbita volta de Apolo Ribeiro e sua presença na Universidade da Cidade R eram totalmente inesperadas.Mavie Rocha nunca soube lidar bem com ele, e Apolo Ribeiro tampouco era fácil de se conviver. Desde que entrou no carro, ela se encolheu no banco do carona, em silêncio, tentando passar despercebida.Até as mãos estavam repousadas, certinhas, sobre as pernas.Apolo Ribeiro lançou um olhar de soslaio. Segurando o volante com uma mão, bateu de leve com os dedos no couro, e, após um breve silêncio, perguntou:— Quem era aquele rapaz?Mavie Rocha, distraída, respondeu instintivamente:— Um veterano da universidade.Ele não pareceu satisfeito.— Que tipo de veterano?Mavie Rocha lançou um olhar na direção de Apolo Ribeiro, sem qualquer intenção de esconder nada, respondendo com a sinceridade de uma irmã diante da pergunta de um irmão:— É um veterano do grupo de pesquisa do departamento.— Vocês costumam se encontrar com frequência?Mavie Rocha balançou a cabeça.— Só nos vemos de vez em quando.Diante dessa resposta, Apolo Ribeiro não insistiu mais.O silêncio voltou a dominar o interior do carro.O veículo seguia o fluxo do trânsito, e, enquanto aguardavam o sinal abrir, Mavie Rocha decidiu romper a quietude, trazendo à tona a dúvida que a acompanhava desde o momento em que viu Apolo Ribeiro de repente naquele dia.— Quando você voltou para casa?Apolo Ribeiro recostou-se no banco, parte do rosto encoberta pela penumbra. Talvez por conta da noite, o distanciamento habitual que emanava parecia suavizado.— Hoje — respondeu ele. — O avião pousou às cinco da tarde.Enquanto falava, virou-se para olhar Mavie Rocha.Ela ainda não havia desviado o olhar.No instante em que Apolo Ribeiro se virou, os olhares dos dois se encontraram.O olhar dele era tão intenso que Mavie Rocha, instintivamente, quis desviar, mas antes disso, ouviu a pergunta dele:— Ouvi dizer que faz quase meio ano que você não volta para casa.O semáforo abriu, e os carros à frente começaram a se mover.Apolo Ribeiro voltou a olhar para frente e pisou no acelerador.Ele não perguntou o motivo de Mavie Rocha não voltar para a família Ribeiro havia tanto tempo, como se o comentário tivesse sido apenas uma observação casual, logo seguindo para explicar o motivo de estar ali.— Preciso resolver alguns assuntos na sede da empresa, que fica perto da Universidade Cidade R. Amanhã é feriado de meio de outono, então aproveitei para te buscar.Mavie Rocha agradeceu com educação.Cidade R era uma metrópole que nunca dormia; quanto mais tarde, mais intensa se tornava sua vida noturna.O ‘Noite Celestial’ era o maior centro de entretenimento de Cidade R, e à medida que a noite avançava, seu movimento atingia o auge.Sob as luzes de néon, o Maybach entrou no estacionamento do ‘Noite Celestial’. Mavie Rocha soltou o cinto de segurança, pronta para avisar Apolo Ribeiro que subiria apenas para pegar algo rapidamente.Antes que pudesse falar, viu Apolo Ribeiro também soltando o cinto para sair do carro.— Irmão, só vou pegar uma coisa para uma amiga, não precisa me acompanhar...Sem diminuir o passo, Apolo Ribeiro respondeu, levando-a consigo:— O ‘Noite Celestial’ à noite é muito movimentado. Prefiro ir junto, não me sinto tranquilo te deixando sozinha.Passaram pela porta giratória, e Apolo Ribeiro conduziu Mavie Rocha diretamente para o acesso VIP.Enquanto as portas do elevador se fechavam, ele olhou para a jovem, cujo visual destoava completamente do ambiente extravagante do ‘Noite Celestial’. Antes de apertar o botão do andar, perguntou:— Qual andar?Mavie Rocha olhou para o painel de botões.Desistindo de apertar ela mesma, respondeu obedientemente:— Oitavo.O elevador mal chegara ao terceiro andar quando um toque repentino de celular rompeu o silêncio do espaço fechado.Mavie Rocha permaneceu quieta, mas seus olhos límpidos não resistiram e lançaram um breve olhar para o celular de Apolo Ribeiro.No visor, piscava um nome salvo em inglês.Apolo Ribeiro olhou para a tela, não atendeu, mas tampouco recusou a ligação.O elevador VIP do ‘Noite Celestial’ era rápido; após poucos toques, as portas se abriram com um “ding”.Mavie Rocha saiu antes de Apolo Ribeiro, dizendo:— Pode ir cuidar dos seus assuntos, eu só vou pegar a encomenda no camarote.Apolo Ribeiro assentiu calmamente, deslizou o dedo na tela para atender a ligação, mas manteve os olhos fixos no corredor à frente, acompanhando Mavie Rocha enquanto ela procurava o camarote certo.Ele não ficou esperando na porta do elevador.Enquanto ouvia o relatório do outro lado da linha, seguiu sem pressa atrás de Mavie Rocha.No fim do corredor, encontraram o camarote 8A02. Mavie Rocha entrou, circulou algumas vezes pelo espaço até finalmente encontrar o pen drive de Serena Gomes, caído entre as almofadas do sofá.Com o objeto na mão, saiu rapidamente.Ao deixar o camarote, viu Apolo Ribeiro apoiado na parede do outro lado, esperando por ela.Ao vê-la sair, ele desligou o celular e levantou os olhos:— Achou o que precisava?Mavie Rocha assentiu.Ele se endireitou, conduzindo-a de volta:— Então vamos para casa.O corredor do ‘Noite Celestial’ tinha formato semicircular, e o 8A02 ficava na extremidade. O caminho de volta pelo lado oposto era mais curto.Mavie Rocha seguiu ao lado de Apolo Ribeiro em silêncio.Quando passaram pelo meio do corredor, ao lado de uma porta de camarote entreaberta, uma voz familiar se fez ouvir lá de dentro:— Mavi? Ela é certinha — o tom trazia uma leve ironia, com uma frieza difícil de decifrar, entre zombaria e indiferença —. Mas certinha demais, tão certinha que nem dá vontade de se aproximar.Criada junto com essa pessoa desde pequena, Mavie Rocha reconheceu imediatamente a voz.No entanto, seu rosto não demonstrou qualquer alteração. Exceto por um breve instante em que hesitou o passo, seguiu caminhando como se nada tivesse ouvido.Dentro do camarote, o ambiente era tomado pela fumaça e pelas mesas repletas de bebidas.Do sofá à frente, Bryan Farias ouviu o comentário e franziu a testa, advertindo:— Felipe, isso foi pesado. Mavi cresceu conosco, sempre foi a mais próxima de você, sempre gostou de estar ao seu lado. E, além disso, as famílias Ribeiro e Rocha têm um compromisso.Felipe Ribeiro soltou um riso sarcástico.As pálpebras semicerradas escondiam parte da zombaria em seu olhar, mas não conseguiam disfarçar o traço irônico em seus lábios.Próximos?Ela só era próxima porque ele nascera na família Ribeiro.Porque ele se chamava Ribeiro, o escolhido para o compromisso de casamento com ela.Se não tivesse tido esse privilégio de nascimento, aquela proximidade jamais seria dele.No estacionamento.Assim que entrou no carro e ligou o motor, Apolo Ribeiro lançou um olhar para a jovem sentada no banco do passageiro. Com o carro em movimento, perguntou:— Brigou com o Felipe?Mavie Rocha segurava o celular, os olhos baixos, e balançou a cabeça.— Não.Há mais de vinte anos, a família Rocha, assim como hoje a família Ribeiro, estava no topo da pirâmide social da Cidade R, entre as famílias mais influentes.Além disso, as famílias Ribeiro e Rocha sempre mantiveram uma relação próxima. Os mais velhos da família Ribeiro estavam constantemente presentes, e, assim que Mavie nasceu, as duas famílias já haviam selado um acordo de casamento.Mas aquela boa fase não durou muito.Quando Mavie tinha dez anos, um acidente inesperado tirou a vida de seus pais em uma só noite, e a empresa da família Rocha quase veio abaixo.A família Ribeiro interveio na hora certa, usando sua influência para proteger os negócios da família Rocha, e imediatamente acolheu Mavie, criando-a como se fosse da própria família.A família Ribeiro tinha dois filhos: Apolo Ribeiro, sete anos mais velho que ela, já estava estudando no exterior quando Mavie foi viver com eles.Quem convivia com ela no dia a dia, dividia o mesmo teto na antiga casa dos Ribeiro e crescia junto, ano após ano, era Felipe Ribeiro, dois anos mais velho.Antes de atingir a maioridade, talvez por viverem juntos, a relação entre ela e Felipe nunca foi ruim.Na verdade, era surpreendentemente boa.Na escola, Felipe a protegia.Na antiga casa dos Ribeiro, Felipe cuidava dela.E mesmo quando os pais de Felipe viajavam e não estavam em casa, em toda noite de tempestade, com raios e trovões, era Felipe quem permanecia ao lado dela.Mas essa convivência harmoniosa chegou ao fim de forma abrupta há dois anos.O acordo de casamento entre as famílias Ribeiro e Rocha nunca foi segredo.Comparada a Apolo Ribeiro, ela e Felipe tinham idades próximas e cresceram juntos. Praticamente todos assumiam, sem precisar dizer, que o compromisso entre as famílias recairia sobre ela e Felipe.A própria Mavie Rocha pensava assim.Até que, dois anos atrás, a relação entre ela e Felipe começou a esfriar sem razão aparente.No início, ela não entendia por que uma amizade construída ao longo de tantos anos mudara tão de repente.Só depois percebeu que Felipe resistia ao casamento arranjado.Ele rejeitava uma vida planejada por outros.Rejeitava viver como um robô, seguindo um roteiro imposto.Naturalmente, ela, a “noiva” escolhida desde a infância, passou a ser rejeitada também.Antes de saber do desprezo de Felipe pelo compromisso, Mavie jamais havia cogitado romper o noivado.Desde pequena, todos lhe diziam que ela e Felipe haviam sido prometidos um ao outro desde o nascimento; os pais de Felipe sempre a trataram como filha, com carinho e cuidado.O casamento entre as famílias, para Mavie, já era uma tradição inconsciente, aceita à medida que crescia.Por isso, ao descobrir a aversão de Felipe ao casamento, ela ficou atônita.Mas, passada a surpresa, a primeira coisa que fez foi aproveitar a desculpa da distância entre o campus da Universidade de Cidade R e a casa dos Ribeiro para se mudar.Assim, evitaria esbarrar com Felipe a todo momento e pouparia o constrangimento dos dois.Neste feriado de meio de primavera, Mavie Rocha nem pensava em voltar para a casa dos Ribeiro. Nas últimas semanas, tinha estado tão envolvida com o projeto da faculdade que mal teve tempo para respirar. Com o feriado, tudo o que queria era descansar no próprio apartamento, jogada no sofá para recuperar as energias.Capítulo 3“Mavi, minha vida está nas suas mãos. Depois do feriado de Festa da Lua, se minha melhor amiga vai estar viva ou não, depende só de você.”Sob a noite tênue, Mavie Rocha caminhava sobre as folhas caídas no caminho arborizado, ouvindo a voz da amiga do outro lado da linha, ao mesmo tempo ressentida e suplicante. Ela conteve o riso e perguntou:— Só esqueceu um pendrive na ‘Noite Celestial’?— Isso, isso mesmo — do outro lado, a resposta veio rápida, quase como um aceno frenético de cabeça —. Um pendrive branco, está na sala 8A02, oitavo andar da ‘Noite Celestial’.Mavie Rocha lançou um olhar para o portão da Universidade da Cidade R, iluminada pelo néon ao longe.Normalmente movimentado, o portão sul do campus da Universidade da Cidade R estava, naquela noite, excepcionalmente silencioso.Os poucos que passavam, apressados e com malas, corriam em direção à saída, ansiosos pelo reencontro com a família durante a Festa da Lua.Ninguém ficava por ali.Desviando o olhar, Mavie Rocha ignorou os veteranos e calouros apressados. Para Serena Gomes, do outro lado da linha, ela disse:— Já vou para lá. Assim que eu pegar, te aviso.Desligou, observando o céu já escuro, e abriu o aplicativo de corridas para ir até a ‘Noite Celestial’ buscar o pendrive da amiga.O dedo mal tocara a tela quando uma voz masculina, conhecida, soou atrás dela.— Mavi.O gesto de Mavie Rocha parou no ar. Ela se virou.Bernardo Carneiro, de camisa branca e calça preta, segurava uma mochila enquanto atravessava a rua arborizada, vindo em sua direção.Quando se aproximou, Mavie Rocha cumprimentou com educação:— Olá, veterano.Ao encarar os olhos límpidos dela, Bernardo Carneiro ficou visivelmente sem graça; até mesmo a mão que segurava a mochila se apertou, involuntariamente. Perguntou:— Ouvi dizer que você vai ficar na Cidade R durante o feriado da Festa da Lua. O grupo do nosso departamento está pensando em fazer um jantar amanhã para aqueles que não vão para casa. Você pode ir?Perto do portão, as buzinas dos carros ecoavam na noite. Mavie Rocha sorriu de leve e recusou, sem hesitar muito:— Amanhã tenho uns compromissos, acho que não vou conseguir.Bernardo Carneiro pareceu um pouco desapontado, mas não deixou transparecer muito.— Tudo bem, quando você puder, marcamos outro encontro.Caminharam juntos até a calçada. Diante dos carros sob os postes de luz, Bernardo Carneiro diminuiu o passo, e, com esperança na voz, ofereceu:— Já está ficando tarde... Quer que eu te acompanhe até em casa?Mavie Rocha ia recusar, mas não teve tempo. Um Maybach preto, edição limitada, parou diante deles. O vidro se abaixou, revelando um homem de feições sérias e distantes, com o rosto parcialmente à sombra.Os olhos eram tão negros que pareciam insondáveis.Ele olhou para Mavie Rocha e Bernardo Carneiro, que estavam próximos.Sua voz, fria e cortante, soou:— Mavi.Mavie Rocha congelou, voltando-se instintivamente.As palavras de recusa a Bernardo Carneiro morreram na garganta ao ver Apolo Ribeiro, no banco do motorista do Maybach. Da sua boca escapou, surpresa:— ...Mano?Bernardo Carneiro também percebeu quem era.Apolo Ribeiro, ele nunca tinha visto pessoalmente.Mas aquele rosto era bem conhecido — presença constante nos jornais e canais de economia. Quem acompanha o mundo dos negócios conhecia o primogênito da família Ribeiro, o Tubarão do Sul, figura central nos círculos empresariais nacionais e internacionais.Mavie Rocha era sempre discreta na universidade. Bernardo Carneiro jamais imaginou que ela tivesse alguma ligação com a poderosa família Ribeiro da Cidade R.Apolo Ribeiro não olhou para Bernardo Carneiro. Com os dedos frios, bateu no volante, mantendo o olhar firme, ainda surpreso, em Mavie Rocha.— Entre no carro. Vamos para casa.Mavie Rocha apertou o celular nas mãos.Despediu-se rapidamente de Bernardo Carneiro e caminhou até o Maybach. Ao invés de abrir a porta, olhou pelo vidro e disse a Apolo Ribeiro:— Preciso passar na ‘Noite Celestial’ primeiro, não quero incomodar...— Não é incômodo.A resposta veio antes que ela terminasse a frase.A voz dele era calma, porém inquestionável.— Entre, eu te levo.Mavie Rocha hesitou.Diante daquele olhar escuro, não teve coragem de insistir. Olhou para o banco do carona, conteve o impulso de recuar e, por fim, entrou.O carro preto rapidamente se misturou ao trânsito iluminado, e o imponente portão sul da Universidade da Cidade R foi ficando pequeno no retrovisor.Mavie Rocha morava com a família Ribeiro desde muito nova, mas mal via Apolo Ribeiro.Primeiro, porque ele passava a maior parte do tempo no exterior.Segundo, porque tinha um temperamento reservado, sempre envolto em uma aura de distância que afastava qualquer tentativa de aproximação. Mavie Rocha, desde pequena, sempre o respeitara, mas mantinha distância.Mesmo quando ele voltava ao Brasil, ela fazia questão de evitar encontros.A súbita volta de Apolo Ribeiro e sua presença na Universidade da Cidade R eram totalmente inesperadas.Mavie Rocha nunca soube lidar bem com ele, e Apolo Ribeiro tampouco era fácil de se conviver. Desde que entrou no carro, ela se encolheu no banco do carona, em silêncio, tentando passar despercebida.Até as mãos estavam repousadas, certinhas, sobre as pernas.Apolo Ribeiro lançou um olhar de soslaio. Segurando o volante com uma mão, bateu de leve com os dedos no couro, e, após um breve silêncio, perguntou:— Quem era aquele rapaz?Mavie Rocha, distraída, respondeu instintivamente:— Um veterano da universidade.Ele não pareceu satisfeito.— Que tipo de veterano?Mavie Rocha lançou um olhar na direção de Apolo Ribeiro, sem qualquer intenção de esconder nada, respondendo com a sinceridade de uma irmã diante da pergunta de um irmão:— É um veterano do grupo de pesquisa do departamento.— Vocês costumam se encontrar com frequência?Mavie Rocha balançou a cabeça.— Só nos vemos de vez em quando.Diante dessa resposta, Apolo Ribeiro não insistiu mais.O silêncio voltou a dominar o interior do carro.O veículo seguia o fluxo do trânsito, e, enquanto aguardavam o sinal abrir, Mavie Rocha decidiu romper a quietude, trazendo à tona a dúvida que a acompanhava desde o momento em que viu Apolo Ribeiro de repente naquele dia.— Quando você voltou para casa?Apolo Ribeiro recostou-se no banco, parte do rosto encoberta pela penumbra. Talvez por conta da noite, o distanciamento habitual que emanava parecia suavizado.— Hoje — respondeu ele. — O avião pousou às cinco da tarde.Enquanto falava, virou-se para olhar Mavie Rocha.Ela ainda não havia desviado o olhar.No instante em que Apolo Ribeiro se virou, os olhares dos dois se encontraram.O olhar dele era tão intenso que Mavie Rocha, instintivamente, quis desviar, mas antes disso, ouviu a pergunta dele:— Ouvi dizer que faz quase meio ano que você não volta para casa.O semáforo abriu, e os carros à frente começaram a se mover.Apolo Ribeiro voltou a olhar para frente e pisou no acelerador.Ele não perguntou o motivo de Mavie Rocha não voltar para a família Ribeiro havia tanto tempo, como se o comentário tivesse sido apenas uma observação casual, logo seguindo para explicar o motivo de estar ali.— Preciso resolver alguns assuntos na sede da empresa, que fica perto da Universidade Cidade R. Amanhã é feriado de meio de outono, então aproveitei para te buscar.Mavie Rocha agradeceu com educação.Cidade R era uma metrópole que nunca dormia; quanto mais tarde, mais intensa se tornava sua vida noturna.O ‘Noite Celestial’ era o maior centro de entretenimento de Cidade R, e à medida que a noite avançava, seu movimento atingia o auge.Sob as luzes de néon, o Maybach entrou no estacionamento do ‘Noite Celestial’. Mavie Rocha soltou o cinto de segurança, pronta para avisar Apolo Ribeiro que subiria apenas para pegar algo rapidamente.Antes que pudesse falar, viu Apolo Ribeiro também soltando o cinto para sair do carro.— Irmão, só vou pegar uma coisa para uma amiga, não precisa me acompanhar...Sem diminuir o passo, Apolo Ribeiro respondeu, levando-a consigo:— O ‘Noite Celestial’ à noite é muito movimentado. Prefiro ir junto, não me sinto tranquilo te deixando sozinha.Passaram pela porta giratória, e Apolo Ribeiro conduziu Mavie Rocha diretamente para o acesso VIP.Enquanto as portas do elevador se fechavam, ele olhou para a jovem, cujo visual destoava completamente do ambiente extravagante do ‘Noite Celestial’. Antes de apertar o botão do andar, perguntou:— Qual andar?Mavie Rocha olhou para o painel de botões.Desistindo de apertar ela mesma, respondeu obedientemente:— Oitavo.O elevador mal chegara ao terceiro andar quando um toque repentino de celular rompeu o silêncio do espaço fechado.Mavie Rocha permaneceu quieta, mas seus olhos límpidos não resistiram e lançaram um breve olhar para o celular de Apolo Ribeiro.No visor, piscava um nome salvo em inglês.Apolo Ribeiro olhou para a tela, não atendeu, mas tampouco recusou a ligação.O elevador VIP do ‘Noite Celestial’ era rápido; após poucos toques, as portas se abriram com um “ding”.Mavie Rocha saiu antes de Apolo Ribeiro, dizendo:— Pode ir cuidar dos seus assuntos, eu só vou pegar a encomenda no camarote.Apolo Ribeiro assentiu calmamente, deslizou o dedo na tela para atender a ligação, mas manteve os olhos fixos no corredor à frente, acompanhando Mavie Rocha enquanto ela procurava o camarote certo.Ele não ficou esperando na porta do elevador.Enquanto ouvia o relatório do outro lado da linha, seguiu sem pressa atrás de Mavie Rocha.No fim do corredor, encontraram o camarote 8A02. Mavie Rocha entrou, circulou algumas vezes pelo espaço até finalmente encontrar o pen drive de Serena Gomes, caído entre as almofadas do sofá.Com o objeto na mão, saiu rapidamente.Ao deixar o camarote, viu Apolo Ribeiro apoiado na parede do outro lado, esperando por ela.Ao vê-la sair, ele desligou o celular e levantou os olhos:— Achou o que precisava?Mavie Rocha assentiu.Ele se endireitou, conduzindo-a de volta:— Então vamos para casa.O corredor do ‘Noite Celestial’ tinha formato semicircular, e o 8A02 ficava na extremidade. O caminho de volta pelo lado oposto era mais curto.Mavie Rocha seguiu ao lado de Apolo Ribeiro em silêncio.Quando passaram pelo meio do corredor, ao lado de uma porta de camarote entreaberta, uma voz familiar se fez ouvir lá de dentro:— Mavi? Ela é certinha — o tom trazia uma leve ironia, com uma frieza difícil de decifrar, entre zombaria e indiferença —. Mas certinha demais, tão certinha que nem dá vontade de se aproximar.Criada junto com essa pessoa desde pequena, Mavie Rocha reconheceu imediatamente a voz.No entanto, seu rosto não demonstrou qualquer alteração. Exceto por um breve instante em que hesitou o passo, seguiu caminhando como se nada tivesse ouvido.Dentro do camarote, o ambiente era tomado pela fumaça e pelas mesas repletas de bebidas.Do sofá à frente, Bryan Farias ouviu o comentário e franziu a testa, advertindo:— Felipe, isso foi pesado. Mavi cresceu conosco, sempre foi a mais próxima de você, sempre gostou de estar ao seu lado. E, além disso, as famílias Ribeiro e Rocha têm um compromisso.Felipe Ribeiro soltou um riso sarcástico.As pálpebras semicerradas escondiam parte da zombaria em seu olhar, mas não conseguiam disfarçar o traço irônico em seus lábios.Próximos?Ela só era próxima porque ele nascera na família Ribeiro.Porque ele se chamava Ribeiro, o escolhido para o compromisso de casamento com ela.Se não tivesse tido esse privilégio de nascimento, aquela proximidade jamais seria dele.No estacionamento.Assim que entrou no carro e ligou o motor, Apolo Ribeiro lançou um olhar para a jovem sentada no banco do passageiro. Com o carro em movimento, perguntou:— Brigou com o Felipe?Mavie Rocha segurava o celular, os olhos baixos, e balançou a cabeça.— Não.Há mais de vinte anos, a família Rocha, assim como hoje a família Ribeiro, estava no topo da pirâmide social da Cidade R, entre as famílias mais influentes.Além disso, as famílias Ribeiro e Rocha sempre mantiveram uma relação próxima. Os mais velhos da família Ribeiro estavam constantemente presentes, e, assim que Mavie nasceu, as duas famílias já haviam selado um acordo de casamento.Mas aquela boa fase não durou muito.Quando Mavie tinha dez anos, um acidente inesperado tirou a vida de seus pais em uma só noite, e a empresa da família Rocha quase veio abaixo.A família Ribeiro interveio na hora certa, usando sua influência para proteger os negócios da família Rocha, e imediatamente acolheu Mavie, criando-a como se fosse da própria família.A família Ribeiro tinha dois filhos: Apolo Ribeiro, sete anos mais velho que ela, já estava estudando no exterior quando Mavie foi viver com eles.Quem convivia com ela no dia a dia, dividia o mesmo teto na antiga casa dos Ribeiro e crescia junto, ano após ano, era Felipe Ribeiro, dois anos mais velho.Antes de atingir a maioridade, talvez por viverem juntos, a relação entre ela e Felipe nunca foi ruim.Na verdade, era surpreendentemente boa.Na escola, Felipe a protegia.Na antiga casa dos Ribeiro, Felipe cuidava dela.E mesmo quando os pais de Felipe viajavam e não estavam em casa, em toda noite de tempestade, com raios e trovões, era Felipe quem permanecia ao lado dela.Mas essa convivência harmoniosa chegou ao fim de forma abrupta há dois anos.O acordo de casamento entre as famílias Ribeiro e Rocha nunca foi segredo.Comparada a Apolo Ribeiro, ela e Felipe tinham idades próximas e cresceram juntos. Praticamente todos assumiam, sem precisar dizer, que o compromisso entre as famílias recairia sobre ela e Felipe.A própria Mavie Rocha pensava assim.Até que, dois anos atrás, a relação entre ela e Felipe começou a esfriar sem razão aparente.No início, ela não entendia por que uma amizade construída ao longo de tantos anos mudara tão de repente.Só depois percebeu que Felipe resistia ao casamento arranjado.Ele rejeitava uma vida planejada por outros.Rejeitava viver como um robô, seguindo um roteiro imposto.Naturalmente, ela, a “noiva” escolhida desde a infância, passou a ser rejeitada também.Antes de saber do desprezo de Felipe pelo compromisso, Mavie jamais havia cogitado romper o noivado.Desde pequena, todos lhe diziam que ela e Felipe haviam sido prometidos um ao outro desde o nascimento; os pais de Felipe sempre a trataram como filha, com carinho e cuidado.O casamento entre as famílias, para Mavie, já era uma tradição inconsciente, aceita à medida que crescia.Por isso, ao descobrir a aversão de Felipe ao casamento, ela ficou atônita.Mas, passada a surpresa, a primeira coisa que fez foi aproveitar a desculpa da distância entre o campus da Universidade de Cidade R e a casa dos Ribeiro para se mudar.Assim, evitaria esbarrar com Felipe a todo momento e pouparia o constrangimento dos dois.Neste feriado de meio de primavera, Mavie Rocha nem pensava em voltar para a casa dos Ribeiro. Nas últimas semanas, tinha estado tão envolvida com o projeto da faculdade que mal teve tempo para respirar. Com o feriado, tudo o que queria era descansar no próprio apartamento, jogada no sofá para recuperar as energias.

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